sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

à prova

sinto-me uma bala
a caminho da câmara
arrasto o corpo pela parede fria
e deixo asfixiar
o sentimento de culpa.
eu.
só consigo sê-lo
neste frio que gela futuros
e petrifica o calor do coração.
aponto-me
faço-me mira
imploro por coragem.
preciso de um copo
que me ajude a decidir.
disparo, disparo-me.
cravo-me no peito
a dois milímetros da paz.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

presente

o presente foi envenenado
pelo passado recente
o sorriso fechou-se
desde anteontem
está cheio de raivas
que vieram para ficar.
mais vale a boca fechada
sem ninguém para magoar
talvez puxe de um cigarro
e a deixe entreaberta.
talvez a feche de vez
e a lacre com doce de framboesa
para não perder a esperança.
o presente foi envenenado
pelo passado de há dez minutos
fechou-se o sorriso
fechou-se o olhar
talvez se feche de vez
e se transforme num passado decente.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

dia-a-dia

a boneca fumava lentamente um cigarro de erva-doce
esforçando-se por esquecer quem era.
o gato mono-esbracejava como um metrónomo
na montra atafulhada da loja do chinês.
eu, ligeiramente cortês,
abri a porta para a senhora passar a sua altivez.
sorri amarelamente
e deixei ir o dia sem interferir.

espelho meu

acordas-me a dúvida
vives como quem ocupa a energia
e os pensamentos
queria enrolar-te
como um presente de ocasião
mas não tenho papel
nem fita
nem coragem
olho-te ao espelho

e sorris

deslizas meios mistérios
e meias histórias
e meias-tintas
que esperam uma boca
para serem contadas
o reflexo acolhe-te

de braços abertos

antes mesmo do primeiro
fechar de olhos
queria partir o espelho
para que desaparecesses em pedaços
e me adormecesses os demónios

a morte e um quarto

a flor murchou
e não foi por falta de água.
entristeceu
no ar fétido do teu quarto.
deprimiu
na palavra amarga da tua boca.
sonhou
no beijo demorado que não deste.
morreu
na saudade do que prometeste e nunca conseguiste ser.

quarentas

arrumo os dedos sujos pela febre
nos lençóis quentes da noite de ontem
respiro a medo
com medo que a realidade
me apanhe na sua armadilha.
quero delirar aos quarenta graus
e arder em paixão durante quarenta noites.
ignoro o paracetamol que me traz para baixo,
fecho os olhos e acendo o isqueiro.
pego fogo ao monstro
e vejo-o desfazer-se lentamente em cinzas.
amanhã quando o despertador tocar
pego-lhe fogo também.
o termómetro sobe aos quarenta e um.
tremo.
tremo de febre e de medo que a febre acabe
e eu tenha de voltar a ser
eu.